O Purebreak resolveu falar sobre o Dia da Consciência Negra, celebrado no dia 20 de novembro, de um jeito diferente. Durante todo mês, através da ação #ConscienciaNegraPRBK, nós iremos, além de produzir pautas sobre o assunto, fazer entrevistas com microinfluenciadores negros que estão por aí na internet fazendo sua parte na luta contra o racismo. Nesta terça-feira (5) nós conversamos com Karoline Miranda: historiadora, jornalista, mulher, negra, mãe do Gael e dona do blog Uma Mãe Feminista.
Karoline escreve desde 2013, quando engravidou aos 19 anos. Foi por conta da gravidez que ela descobriu que esse processo na vida de uma mulher não é tão bonito quanto mostram nos filmes ou novelas. Começou com o blog para se desconstruir e ajudar outras jovens que passavam pelo mesmo problema. Foi assim que, em 2014, também se descobriu feminista. Vale lembrar que Karoline também é uma mulher negra. Ou seja, todos os seus debates trazem o recorte racial.
Por que você decidiu fazer o blog?
"Antes de ter o Gael, eu via programas na TV sobre maternidade, parto, lia coisas mágicas do tipo 'não sei como vivi até hoje sem sentir esse amor', e quando o Gael nasceu, eu não entendi nada, porque não sentia nada daquilo. Tive depressão pós-parto e escrevia para desabafar. Percebi que na verdade, o que eu sentia era o que muitas outras mães sentiam, mas não tinham coragem de dizer. E aí comecei a divulgar realmente o meu trabalho."
Para você, qual é a importância de ter pessoas negras produzindo conteúdo na internet?
"É essencial e necessário. Eu consumi muito conteúdo branco (e ainda caio nesse gatilho) e quando tento aplicar a mim, aquilo não se encaixa e eu me sentia/sinto horrível. Negros são uma minoria social, mas não populacional (pelo contrário). Sempre somos vistos como faxineiras, domésticas, babás, porteiros, seguranças, bandidos, a televisão reforçou isso por décadas, a internet reforça isso muitas vezes. Esse espaço também é nosso, e quanto mais eu vejo que a gente ocupa esse espaço, mais sinto que ajudo a construir um mundo melhor para o meu filho."
Já percebeu o impacto positivo do seu trabalho na internet na vida de outras pessoas?
"Ah, com certeza. Sempre tem uma mensagem no direct dizendo o quanto o que eu falei impactou na vida daquela pessoa. Já tiveram mães que me procuraram para dizer que leram o meu texto e passaram a se culpar menos, se julgar menos, me pediram ajuda, e quando eu conseguia elas diziam que eu fazia diferença na vida delas. Isso é indescritível, emocionante, eu na maioria das vezes nem sei o que dizer de tanta alegria."
Muita gente passa pelo processo de se "descobrir negro". Aconteceu com você?
"Minha mãe evitava a palavra negro na nossa casa - embora todos fôssemos, de formas diferentes. Ela me lia como 'mulata', mas sempre reiterou que eu tinha que ser duas vezes melhor pela minha cor, sempre ficou preocupada com eu namorar pessoas brancas e sempre me alertou do racismo. De fato, ele sempre existiu. Na adolescência eu sofri muito bullying. Fui chamada de 'Rafa da Malhação' pelo meu cabelo, porque na época era o nome de um personagem que usava black, interpretado pelo Ícaro Silva, de forma pejorativa. Um namoradinho terminou comigo porque dizia que a mãe dele não ia aceitar uma namorada negra. Fui chamada de macaca por uma sogra... Você sente. Sempre sente. O racismo eu sempre senti. O 'se descobrir' negro, de fato, só aconteceu quando eu entendi que mulata, moreninha, queimadinha, isso tudo era só um eufemismo que as pessoas utilizavam para evitar me chamar do que elas achavam uma ofensa, um xingamento, mas era o que eu era: negra."
O que representa o Dia da Consciência Negra pra você?
"Como historiadora, acho importante termos uma relevância histórica. O povo negro, quando chegou aqui, foi privado de conhecer sua ancestralidade, seu passado, sua própria história, e a nossa história aqui é a história que o branco contou até hoje. Ter um dia nosso, com um dos nossos, e se empenhar a conhecer a nossa história feita por quem realmente estava lá é muito importante. Mas, infelizmente, os brancos ainda não suportam a ideia de que temos uma história e insistem que a data é racista. Provavelmente porque não foram os ancestrais deles que foram escravizados, mortos e torturados."
Ser mãe solo e jovem não é fácil. Além da dificuldade do dia a dia, ainda há os julgamentos. Você acha é que é mais complicado quando se é uma mulher negra?
"Ah, completamente. As diferenças já começam no hospital maternidade. Sofri violência obstétrica no período de internação e vi mulheres mais retintas do que eu sofrerem mais. Quanto mais escura, menos gente você é. O SUS, que deveria proporcionar um parto natural de excelência e qualidade, ainda é um sistema que viola mulheres negras e massacra o momento que deveria ser emblemático e posso até dizer, romântico. Mas tudo é diferente. Penso que quando crescer, o meu filho pode ser obrigado a descer do ônibus pela polícia. O cabelo dele é diferente e as outras crianças brancas não entendem isso, e o papel da mãe negra é preparar ele, reforçar a beleza dele, dizer que o crespo é lindo, essas coisas. A falta de recursos também é complicada. As mães negras ainda são as mais ausentes em casa, pois precisam trabalhar o dobro para colocar comida na mesa. Acredito que dentre elas, sou privilegiada por ter acesso à universidade, mas ainda assim é difícil. Enquanto a Grazi Massafera dispensa a babá, eu só vejo meu filho sábado e domingo."
Quais questões você acha fundamental na hora de se discutir maternidade e racismo?
"Um pré-natal de qualidade no SUS, que não ignore as expectativas da mãe; um planejamento familiar adequado, pois as mulheres negras ainda têm menos acesso à métodos contraceptivos. Violência obstétrica e depressão pós-parto nos atingem mais, enquanto a criação com apego, a disciplina positiva, o BLW (desmame) e o método Montessori são muito menos acessíveis a nós. A criação e a formação de identidade, a partir de leituras infantis que reforcem a ancestralidade negra também. Acredito que a saúde mental de mães de adolescentes negros também deve ser levada em conta. Eu tenho certeza de que vou precisar de muita terapia quando Gael atingir os 13."
Quais são as dificuldades (e preocupações) de criar e educar uma criança negra?
"É difícil, porque você cria o seu filho para ele não morrer. Somos umbandistas, ele é naturalmente muito religioso desde novo e desde já temos que ensinar ele a não esconder a própria religião e não abaixar a cabeça por nenhum racismo religioso, mas é um risco de tomar uma pedrada na cabeça. Tem que ensinar a cuidar do cabelo, que a cor da pele dele é bonita, que ele não precisa raspar a cabeça. Gael estudava em uma creche pública em que eu sempre me apavorava com medo de operação policial, porque criança com uniforme da prefeitura é alvo acidental da PM, não interessa se tem 5 ou 12 anos. Ensinar que o povo dele têm história. Mas acredito que as coisas irão piorar quando ele crescer. Ensinar a levar carteira de identidade e de trabalho, a não responder policial se for parado, a andar sempre muito bem arrumado para não correr o risco de confundirem ele com um bandido. Acho que ainda não tô preparada pra isso."
O que você acha que as famílias podem fazer, em relação a educação dos seus filhos, para mudar a estruturas racistas da sociedade?
"Para começar, elas podem parar de tentar evitá-las. Esse discurso de 'filho, olha, somos todos iguais, não tem diferença' não cola mais, a tal 'consciência humana' não existe. As famílias brancas devem colocar para os seus filhos a realidade: mais de 300 anos de escravidão fizeram com que o coleguinha preto da escola sofresse mais que ele, tivesse menos oportunidades, sofresse discriminação. E tentar ser o mais empático possível. É muito fácil falar que não têm preconceito, se não se aprofunda na nossa história. As famílias devem fazer o dever universal delas: educar. Mas contando o nosso lado da história também."