Antes mesmo de conquistar o seu diploma de jornalista, Cleyton Santana já estava produzindo conteúdo na internet. A vontade de falar sobre as suas vivências e contar um pouco sobre as expectativas de quem nasceu negro e gay eram maiores do que qualquer outra coisa. Com mais de 5 mil inscritos no canal do YouTube, foi expondo a sua trajetória que Santana conseguiu aprender mais sobre si mesmo. Mas, apesar de todas as descobertas que fez nos últimos anos, o produtor de conteúdo sabe que o mundo ainda está longe de ser um lugar perfeito para quem é negro e homossexual. No mês da #ConscienciaNegraPRBK, viemos questionar como o racismo também afeta as relações homoafetivas.
Por que você decidiu fazer o seu canal?
"O meu canal nasce de 2015 para 2016, de uma demanda dos meus amigos falarem: 'Cleyton, produz, porque essa narrativa é importante. Você atinge um público muito específico e é importante que eles tenham acesso a sua vivência, tua experiência de vida'. Eu queria muito produzir pessoas, eu não queria começar no youtube, ter um canal falando sobre as minhas vivências. eu não queria estar nesse lugar da exposição. Mas acabou que foi algo muito natural. E eu comecei a produzir e gostei do que aquilo tava fazendo comigo. Foi ótimo eu estava me descobrindo, percebendo coisas no meu cotidiano e indagando sobre muita coisa. Eu acredito que dividir essas indagações é importante. É nessa perspectiva que nasce o canal."
Já percebeu o impacto positivo do seu trabalho na internet na vida de outras pessoas?
"O meu canal não tem um engajamento forte como outros canais que falam sobre outras
demandas. A gente acaba atingindo um público muito específico, que realmente partilha das mesmas vivências. Uma experiência que me marcou foi quando viajei para Belo Horizonte e um menino chegou até a mim e falou o quanto foi importante ele levar a narrativa do meu canal pra casa dele, conversar com a família sobre essas questões de raça e sexualidade. Eu me senti tão especial porque eu vivenciava um momento muito parecido na minha casa, sabe? Minha família tava começando a entender, se desconstruir e foi uma troca. Aquilo foi um saldo do que eu tava construindo no mundo, expondo a percepção da minha vivência na internet e encontrando essa pessoa que também estava passando por isso. Pra mim foi fantástico porque era algo que eu não esperava."
Para você, qual é a importância de ter pessoas negras produzindo conteúdo na internet?
"É olhar essa diversidade, de fato, acontecendo no Brasil. Um país que é representado por 54%, de acordo com o IBGE, por pessoas negras. É mostrar que tem tanta coisa ainda pra ser vista. O nosso olhar é uma possibilidade de deslocamento do lugar-comum de uma única narrativa. Eu acho que ver pessoas negras produzindo conteúdo na internet e tendo essas múltiplas visões, é ver como o Brasil é gigantesco, sabe? Como existem possibilidades para falar sobre diversos assuntos. E que pessoas negras também estão ali produzindo e o quanto é importante que elas tenham esse reconhecimento - é um grande problema a gente não ter conteúdo de pessoas negras engajando na internet, apesar de ter uma produção riquíssima, com vários olhares, mas que ainda existe na nossa sociedade uma demanda de lidar com a aceitação de pessoas negras nesse lugar da produção de conteúdo, de gestão e de produção de conhecimento. Então, existem essas diversas narrativas, esses diversos conteúdos sendo colocados, mas é um caminho que a gente ainda precisa trabalhar para conscientizar o restante da população brasileira: gerar essa consciência racial nesse grande público, nessa massa, para que eles entendam que existe um conteúdo para além de um olhar eurocêntrico."
Muita gente passa pelo processo de se "descobrir negro". Aconteceu com você? Como foi?
"No meu caso, eu sempre me entendi como uma pessoa negra devido o meu tom de pele, por eu ter um tom mais retinto. No entanto, o meu processo foi de resgate, tanto da minha ancestralidade quanto da cultura que envolve a minha negritude, e ressignificar e autoafirmar para mim e para o meu coletivo, no caso, meu ambiente familiar. Então, no momento em que eu me afirmo, acabo esbarrando e atingindo pessoas próximas a mim, como minha mãe, meu pai e meus familiares, negros e não-negros. E aí eu começo a ressignificar esse caminho pra gente resgatar isso, minha família. Então, pra mim, não existe um "descobrir", mas sim um resgate."
O que representa o Dia da Consciência Negra pra você?
"É repensar esse local de transição. Pessoas foram tiradas, arrancadas do seu local de origem. Foram trazidas para o Brasil, nesse regime escravagistas. Mais de 4 milhões de pessoas são colocadas numa terra nova para viver momentos de caos e sofrimento. Mais de 1 milhão de pessoas chegam no Rio de Janeiro, onde os meus ancestrais se encontram, de certa forma, e repensar o quanto toda essa transição, toda essa movimentação que dura mais de 300 anos, como ela me atinge, sabe? Como ela atinge toda uma estrutura de avanço e de construção de uma memória da minha família. Então, o Dia da Consciência Negra é importante para reconhecer a potência que é ser eu nessa sociedade, onde eu apareço no mundo com esse saldo. E é um convite, né, para pessoas que não partilham dessa realidade ou que partilham dessa realidade, que estão inseridos nessa sociedade de alguma forma, repensarem esse local. Qual é o meu local de privilégio, qual o meu local de acesso e será que a nossa sociedade responde a partir de um local de equidade? E repensar as formas e o lugar da ação. Qual é o meu lugar na ação? No meu caso, o Dia da Consciência Negra é importante para eu dizer aos meus familiares, amigos e seguidores das minhas redes, que a gente precisa se autoafirmar. A gente precisa ter força para encarar essa batalha de resgate e reconstrução de um caminho. Se a gente conseguiu resistir e existir até aqui, a gente pode sim lutar e abrir caminhos para as próximas gerações, daqui a 50 ou 100 anos. Que elas tenham um momento para respirar de forma mais tranquila."
Por que você acha que é tão importante falar sobre a saúde mental de homens negros?
"Falar de saúde mental é falar dos mecanismos de sobrevivência. Eu acho que a gente, desde sempre, desde a infância, tem o corpo marcado por pequenos detalhes. Nosso pai fala pra gente não correr quando criança em determinados espaços, por exemplo, seja uma mínima brincadeira. E isso acaba resultando no nosso futuro. Como eu olho isso? Eu não consigo me imaginar correndo sem estar com uma roupa de fazer exercícios, por exemplo. Ou quando a gente entra em um determinado local, num mercado. Desde pequeno eu lembro da minha mãe falando: 'Olha só, não encosta nisso aí. Você quer que o segurança te entenda com outro olhar?'. Isso está meio que enraizado na nossa geração. E acaba que, como você aprende na infância que você não pode mexer num determinado produto, porque pode ser confundido, você no futuro acaba sendo aquele jovem ou pessoa adulta que entra numa farmácia e pega uma cesta só para comprar um produto. Sendo que não tinha necessidade, sabe? Aquilo está em você, enraizado na sua memória afetiva que foi construída. Esse é um exemplo que desencadeia em vários outros que mexem com a nossa segurança, autoestima, enfim, com um leque de opções que acabam gerando saldos negativos na nossa saúde mental. E falar de saúde mental para homens negros, que representam no Brasil uma taxa de homicídio muito grande, é dizer para eles que a gente está junto aqui,partilhamos dos mesmos sentimentos e vamos tentar construir um ambiente mais saudável para nós. Vamos nos desfazer dessas demandas que não são nossas, que foram colocadas e impostas por séculos."
Como o racismo também afeta as relações homoafetivas?
"Ser um homem negro e gay nessa sociedade é um local muito disruptivo porque a construção sobre esse corpo, que eu habito, é muito desleal. Porque o homem negro precisa ser forte, ele é colocado nesse local de um homem destemido, que não tem uma sensibilidade, que não pode haver, e muito menos se relacionar com um outro homem. Então, é quase que surreal esse corpo estar nesse espaço. E aí isso acaba afetando na nossa forma de se relacionar. E sem contar que esse corpo é hipersexualizado o tempo todo. Não só isso, ele também é preterido. Então, existe esse lugar do 'vamos usar esse corpo só para o prazer', de forma clandestina. Então, esse corpo é colocado no lugar do preterimento, da rejeição. Então, pra mim, a gente é colocado muito nesse local do corpo atraente, hiperssexualizado, um corpo quente... Toda uma construção que não condiz com a realidade e nem deve. Como existe uma pluralidade, cada corpo é um corpo e responde de uma forma. Mas, o racismo é tão cruel, que ele coloca a gente em determinada caixa. E a caixa do hiperssexualização é muito forte. E acaba atingindo tanto a comunidade negra, mas, na maioria, a comunidade branca também. E essas relações são muito conturbadas nesse sentido, porque acaba sendo um local de muito desafeto. Acho que o caminho para comunidade negra LGBT é começar a pautar, sim, a afetividade, que é um tema muito importante pra gente. Para mostrar saídas e representações possíveis sobre os nossos corpos, as nossas relações familiares. É mostrar possibilidades. É respirar mais aliviados sobre o nosso futuro enquanto homens negros e gays."
Quais referências você ainda acha que faltam na mídia para que homens negros comecem a falar sobre os seus sentimentos e tenham vontade de fazer isso?
"Eu estava pensando durante essa semana como a gente torna esse assunto de forma mais abrangente, né? Esse assunto da masculinidade, da afetividade entre homens negros e todos os homens de uma maneira geral. E aí eu sempre penso muito que a cultura heteronormativa nos diz o tempo todo que o futebol é o local, para homens brasileiros, é o lugar de afirmar a masculinidade. E quando você não corresponde a esse local, você fica deslocado. Mas, eu sempre penso que a mídia poderia criar um discurso que chegue de maneira coletiva, ampla: colocar os jogadores de futebol, por exemplo, para repensarem esse local. Eu acredito hoje que toda figura pública tem uma missão política por trás do seu corpo. Então, um jogador é uma figura pública. E ele tem essa missão também. Então, é gerar neles essa demanda de se posicionar e falar o quanto pensar a masculinidade é pensar a nossa saúde, seja mental ou física."
Você acha que a comunidade LGBT consegue abraçar as questões raciais? Se não, o que falta?
"Eu acredito que a comunidade LGBT não me contempla. Não me contempla em nenhum sentido. O meu corpo é exposto nessa comunidade, primeiro por não representar um padrão a ser seguido e segundo por não ser aceito mesmo. Somos colocados num local de hiperssexualização e de rejeição. E quando você se posiciona e tem um olhar sobre a temática racial e coloca isso com pessoas da comunidade LGBT, em sua maioria pessoas brancas, você é visto como o 'militudo' ou alguém que está exagerando em uma pauta. Sendo que não é assim. Eu acredito que, a forma como homens e mulheres LGBTs são construídas, mulheres brancas e homens brancos são construídos nessa sociedade, não está ligado a forma como a gente foi construído nesse sentido. Então, existe sim uma partilha. Eu acredito que, se agente quer levar o movimento negro e LGBT, precisamos dessa solidificação. O movimento negro precisa se compreender e se entender como um movimento acessível para a comunidade negra LGBT, que exige uma outra demanda sobre esses corpos. A partir do momento que começarmos a se pautar e se entender, aí sim a podemos iniciar um diálogo com a comunidade LGBT branca. A gente tá sendo o tempo todo pautado por esse grupo. É necessário se entender, se colocar e se posicionar nesse espaço de disputa, se não a gente acaba caindo no lugar de hiperssexualização, rejeição e etc. Eu sempre gosto de me perguntar 'para qual local meu corpo está sendo destinado?', 'como vai ser a minha velhice sendo um sujeito negro e gay?'. Quero seja confortável, que tenha a presença de pessoas com quem eu consiga construir uma família. Mas esse espaço que o meu corpo é ocupa na juventude é muito ruim. É um local que não me dá essa possibilidade, que acaba com a minha saúde mental. Porque, além de sair do armário, a gente também precisa lidar com o racismo. Em qual local eu preciso estar? Eu sempre falo que o caminho é a gente fortalecer a nossa rede, a nossa rede de afeto e respeito."