As plataformas de streaming acabaram por dar o golpe de misericórdia no formato físico. Ou não? Apesar de falarmos do declínio do mercado de DVD e Blu-Ray desde mesmo antes da chegada de plataformas como Disney+ ou HBO Max, a verdade é que os filmes em disco resistem a desaparecer e ainda representam uma seção importante da trajetória comercial de um filme.
Como tantas vezes foi dito, o mercado de locadoras acabou se transformando à imagem e semelhança do vinil. Deixou de ser um meio de consumo massivo para se tornar um reduto de colecionadores, fãs, estudiosos e devotos do físico. Os espectadores que veem filmes no celular não são o alvo óbvio dos fabricantes de Blu-Ray. Mas o fato de que, enquanto o mercado de DVD se contrai, os Blu-Rays UHD, ou seja, os de alta definição, crescerem 20% deixa bem claro quem os está comprando.
No entanto, há outro cliente habitual do formato físico que não é o devoto que compra doze edições de 'Endgame' em lata de alumínio que formam o rosto do Capitão América. Trata-se do arquivista que vê no formato físico uma forma de conservar filmes estranhos, raridades e clássicos que não chegam à Netflix. Há uma intenção preservadora em certos colecionadores de filmes em formato físico, que sabem que sempre terão à mão 'O Império Contra-Ataca', mas... e quanto a 'A Invasão dos Agricultores Sangrentos'? Não pensam nos druidas rednecks?
Este ponto de vista está se acentuando ultimamente, com as plataformas apagando boa parte de seu catálogo (e não precisamente as partes mais obscuras) por motivos econômicos. Basicamente, economizar no pagamento de impostos e royalties aos criadores. Começou a HBO Max eliminando 'Westworld' e outras séries menos conhecidas como 'The Nevers', a antologia romântica 'Love Life', a história de uma publicação erótica para mulheres nos anos 70 'Minx' e a comédia familiar ambientada na Miami latina dos anos 80 'Gordita Chronicles'.
Todos eles são produtos medianos, quase nenhum está entre os hits da plataforma, mas existem e, possivelmente, têm seu público. Mas sem terem sido editados em formato físico em muitos casos, estamos diante de pouco menos que uma condenação à extinção. Outro exemplo básico, também resultante das eliminações do catálogo da HBO: desapareceram mais de 200 episódios de 'Vila Sésamo'. Um fato possivelmente anedótico para o espectador médio, mas um verdadeiro desastre para aqueles interessados na história do meio, do qual o programa criado por Jim Henson forma um pilar fundamental.
A sensação foi semelhante com a purga que sofreu o conteúdo da Disney+. Chamou a atenção especialmente a retirada de uma série tão recente quanto 'Willow', apesar de ter sido um fracasso de audiência, mas há mais: a série Marvel 'Runaways' vai embora, assim como a biografia dos Sex Pistols 'Pistol' ou a ficção científica juvenil 'Motherland'. De novo, não são essenciais para a plataforma, mas surpreende pela recentidade de sua incorporação.
Há um elemento extra na equação, e é que as plataformas de streaming não são exatamente o melhor lugar para assistir a um filme com a qualidade que nossos dispositivos atuais permitem. Por isso, o grupo norte-americano Digital Entertainment Group (DEG) em seu relatório de 2022, apesar da queda de vendas no formato doméstico, o formato 4K UHD disparou 20%, o que demonstra que os espectadores querem ver filmes com boa qualidade, simplesmente as plataformas não oferecem.
Há algumas semanas recebemos a notícia de que o RARBG estava fechando suas portas. Era um dos trackers de torrents mais importantes, após o fechamento do The Pirate Bay por efeitos da COVID (alguns membros da equipe morreram na pandemia), pela guerra da Ucrânia, porque entre os gestores do serviço havia tanto russos quanto ucranianos e pelos custos do serviço, que dispararam com a inflação. Como explicavam no TorrentFreak, o RARBG também foi uma fonte estável de conteúdos, mas seus criadores acabaram decidindo abandonar o projeto.
É significativo que sites que em seu dia foram demonizados pela indústria do entretenimento como as aplicações que matariam o audiovisual se tornaram os últimos redutos das produções que resistem a entrar no mainstream. Velhos conhecidos dos "piratas" de mais de uma década atrás, como Soulseek, eMule ou Napster, são agora repositórios P2P confiáveis de cinema de culto, hip hop underground, punk extremo e curtas experimentais.
Além disso, ultimamente, os repositórios de downloads não autorizados tornaram-se o lugar a que recorrer para assistir a séries e filmes como aqueles que saem pela porta dos fundos das plataformas. Por exemplo: a maioria dos filmes de animação de heróis da DC (com exceções como as produções da LEGO) desapareceram da HBO Max. Os abundantes longas-metragens de Batman, Superman ou a Liga da Justiça que adaptavam seus quadrinhos mais míticos já não estão na plataforma, e o DVD é o único recurso para chegar até eles, às vezes contra os próprios interesses das produtoras ('Justice League Flashpoint Paradox' seria mais que vendável como complemento do novo filme de 'The Flash'). O DVD... e os downloads à margem da disposição que dão os donos.
Já não se trata de uma questão de acessibilidade econômica às plataformas, ou da sempre polêmica questão de como os donos dos direitos cobram dos usuários uma e outra vez pelo mesmo conteúdo. É mais bem que nem isso é economicamente rentável, e para economizar taxas, impostos e royalties aos criadores, preferem apagar do mapa seus produtos. Nesta tormenta perfeita à qual se soma a queda, como fichas de dominó, das plataformas P2P e o mercado dos formatos físicos, aqueles usuários preocupados em ter uma via de acesso a seus filmes e séries favoritos se encontram na paradoxal situação de que é mais complicado que nunca acessar o que lhes interessa. Justo na época em que parecia que justamente esse tema estava resolvido.